Não há como negar a importância de Fidel para a História. Fidel mudou drasticamente o curso de uma ilha nas Américas e conseguiu por muitas décadas desempenhar papel relevante na história mundial. Conseguiu também influenciar a mente de bilhões de pessoas em todo o planeta. É e será, por muito tempo, uma das personalidades mais conhecidas do mundo.
O reconhecimento de sua importância não implica, automaticamente, na afirmação da natureza de seu papel. Muitos o veem como um paladino inquebrantável das vítimas da opressão e da busca de um mundo mais justo. Muitos outros o veem como o executor frio de milhares de dissidentes, a personificação da teimosia e da arrogância e a razão do desastre de Cuba como nação auto-sustentável.
Não é difícil entender ambas as visões. O regime contra o qual Fidel liderou a revolução original não tem nada a dizer em sua defesa: corrupção, desigualdade, desrespeito ao que hoje consideramos como direitos inalienáveis. O grande gigante que se tornou inimigo logo em seguida também era e continua repleto de culpas perante o mundo. A julgar pelos defeitos daqueles que Fidel combatia, não há como Fidel não ter sido um herói. Coroando essa lógica, Fidel era carismático e persuasivo. Multidões o ouviam embevecidas por horas, inclusive em sociedades totalmente livres para ignorá-lo. Fidel soube desenvolver educação e saúde de alto nível, e soube fazer excelente marketing interno e externo disso. Êle usou com maestria o bloqueio americano para justificar interna e externamente todas as mazelas da ilha. Também soube aproveitar-se da sua posição de bastião da resistência anti-americana para receber subvenções significativas e esconder sua incapacidade administrativa e econômica. Para muitos segmentos inconformados, Fidel soube fazer de Cuba uma fonte de inspiração e esperança.
Do outro lado, mesmo assumindo um crédito total para Fidel pela eliminação do regime de Batista, Fidel traiu sua revolução permitindo-se passar de libertador a dono do povo cubano. E exerceu sua propriedade por 49 anos com pulso de ferro, dolorosos por mais persuasivos que fossem seus discursos.
O grau de convencimento a respeito de suas próprias verdades foi tão grande que a possibilidade de qualquer passagem do poder a outro o aterrorizava como um risco inaceitável para seus ideais. Até para passar o poder formal a seu irmão, Fidel retardou até quando já, fisicamente, não conseguia mais exercê-lo.
A característica insular de Cuba e a possibilidade de controlar comunicações de longa distância até recentemente, permitiram a Fidel manter Cuba isolada da realidade mundial por muitas décadas. A força da comunicação interna, o domínio absoluto dos meios de educação e a capilaridade da vigilância ideológica, formal e informal, serviram como cloro na piscina, mantendo em níveis baixíssimos as idéias divergentes.
Infelizmente, nem as idéias de Fidel nem os seus métodos provaram ser muito efetivos. Em minha visita há poucos anos, observei casas em ruínas ocupadas por ociosos, terras improdutivas e abandonadas, jovens evadindo-se de escolas e cidadãos comuns buscando maneiras nem sempre legais de conseguir um dinheirinho extra. No restaurante da rede estatal, a maioria do cardápio era inviável por falta de gás. Tivemos de comer pizza feita no forno elétrico. Na noite seguinte, o restaurante privado (paladares) não podia nos servir alguns pratos por falta de mantequilla e numa tarde o café não podia nos servir um cappuccino por falta de canela. Visitamos alguns pontos de distribuição de produtos para cubanos e comprovamos a extrema escassez. Não falamos de smartphones ou computadores impedidos de entrar por causa do bloqueio. Falamos de coisas passíveis de produção interna. No caso dos restaurantes, o gás que faltava na rede estatal existia na rede privada: “se eles não servirem por falta de gás, seus salários virão no final do mes igualmente. Se nos faltar o gás e não pudermos servir os clientes, não teremos como pagar os impostos e perderemos a concessão. Temos de nos virar e conseguir a qualquer custo.”
Uma minoria ínfima da população tinha acesso a restaurantes comuns, sem nada de luxo. Menos ainda a programas típicos de turistas. Ali, cubanos somente como empregados.
No exemplar do órgão oficial do partido, havia o reconhecimento oficial da improdutividade e a admissão da esperança de que a permissão de cooperativas privadas em alguns setores traria uma ajuda. O modelo estatal foi incapaz de motivar um mínimo de produtividade.
Cuba deve ter se constituído no mais perfeito e duradouro laboratório de desenvolvimento social da História moderna. Por 50 anos, um governo único conseguiu pleno domínio físico, econômico, emocional e de informação sobre uma população. Nunca um governo teve tanto poder de convencimento para moldar uma mentalidade e um sistema social.
Entretanto, embora boa parte das coisas que faltavam na ilha pudessem ser produzidas com terras e trabalho internos, a realidade era de falta rotineira. Fidel foi sempre capaz de inflamar revolucionários mas se revelou desde cedo um fracasso na escolha de talentos, na delegação de responsabilidades e na motivação para o trabalho.
Faz-se uma revolução para romper com um status quo. Mas o estado revolucionário não pode ser permanente, pois cobra um preço demasiado alto da sociedade. Fidel, entretanto, somente sabia liderar uma revolução, então, após 50 anos, a ilha não poderia ainda alcançar uma normalidade.
Somente o afastamento de Fidel e a entrada de Raul permitiu algumas tímidas aberturas, motivadas pela necessidade desesperada de receitas turísticas.
Para quem está disposto a ver esse outro lado, apesar de Fidel ter sequestrado todo um povo por 50 anos, êle não apenas conseguiu a paixão de muitos dos seus sequestrados, como conseguiu a paixão de muitos dos que de fora observavam. Fidel elevou a Síndrome de Estocolmo ao quadrado.
Embora alguns aspectos específicos de Cuba tenham evoluído acima do observável em muitos outros países ‘menos revolucionários’, países como a Coréia do Sul demonstraram a possibilidade de evolução mais rápida e efetiva seguindo uma cartilha de livre iniciativa e liberdade ideológica. Fidel provou que sua ideologia e métodos, por si mesmos, não promovem o desenvolvimento sustentável e podem, ao contrário, ser contraproducentes no longo prazo.
A análise objetiva do papel de Fidel em Cuba e no contexto internacional é complexa.
A mim parece que não há intenções ou benefícios de Fidel que compensem a dependência de uma pessoa por tanto tempo ou a restrição de escolha de um povo, por melhores que sejam os tutores tomando as decisões no seu lugar.
A experiência cubana provou que nenhum regime, ideologia e, principalmente, nenhuma pessoa consegue assegurar um resultado ótimo. Portanto, isolar um povo do acesso a informação e dar ao Estado o monopólio da verdade nunca é justificável.
A questão não é que as outras alternativas são ruins. A questão é que NENHUMA é suficientemente boa para justificar a inibição das outras. A preservação da liberdade de mudar é, portanto essencial.
Procuro analisar e concluir com base em fatos e lógica. Entretanto, conclusões diferentes e até opostas são possíveis, mesmo com a determinação de privilegiar a lógica e objetividade.
Apesar disso, a opinião da vasta maioria da população do planeta tende a ser formada pela habilidade dos comunicadores em usar apelos emocionais e relacionar suas propostas com as crenças pessoais.
Ao contrário do que faz parecer a atrasadíssima conclusão do Oxford, somente agora reconhecendo a primazia da pós-verdade, Fidel era um especialista na matéria já na década de 50.
A capacidade de Fidel em criar a sua pós-verdade conseguiu a sua virtual canonização ainda em vida e a pressuposição, em princípio, da ausência absoluta de pecados.
Com a sua morte, a que pedestal mais alto conseguirão promovê-lo?
Cuide-se Arcanjo Gabriel, você agora tem um concorrente de peso!
Nota: Post-truth – relating to or denoting circumstances in which objective facts are less influential in shaping public opinion than appeals to emotion and personal beliefs.